''Os Batalhões Sagrados'' de Rodney Stark é um livro minimamente aceitável sobre as Cruzadas?
Autor: Tim O'neill 27/07/2022É um pouco clichê que devamos estudar o passado para entender o presente. Isso é algo que os professores do fundamental dizem às crianças para explicar porque é importante estudar algo que parece ser totalmente irrelevante a um adolescente de catorze anos. Como muitas coisas ditas pelos professores de história do fundamental, essa é uma que é apenas parcialmente convincente, e só é verdadeira até certo ponto. Em mãos hábeis, certamente, algumas lições sobre o presente podem ser cuidadosamente extraídas do passado.
Adrian Goldsworthy faz isso bem em seu epílogo para o livro The Fall of the West: The Death of the Roman Superpower, e o radicado em Harvard Niall Ferguson fez uma carreira popular enquanto autor e apresentador de televisão capaz de explicar o presente através do exame do passado. Contanto que não nos alonguemos em analogias espalhafatosas ou nos indulgenciemos em um simplista determinismo histórico, nossos professores de história do fundamental estavam corretos em um ponto.
O mais problemático ainda é, no entanto, quando as pessoas tentam analisar o passado através do prisma distorcido do presente. Essa foi uma tentação que muitos historiadores e, mais comumente, blogueiros de história caíram nos últimos anos. Isso foi praticamente uma febre durante o Iluminismo quando polemistas como Voltaire e historiadores como Gibbon pintaram versões idealizadas dos romanos e os apresentaram como, ou os ‘’melhores’’ [dentre eles] pelo menos, praticamente como [outras] versões deles mesmos, exceto que em togas e sem as perucas empoadas. É por isso que temos a visão prevalente que os romanos eram pessoas tolerantes, urbanas, racionais, preocupadas com grandes construções e ciência, enquanto nossa visão de senso-comum ignora ou esquece coisas como as lutas de gladiadores, crucificações em massa, perseguições religiosas, a aniquilação de rebeldes e a amálgama bizarra de superstições irracionais que formavam a Religião Romana.
Miniatura de Pedro, o Eremita, liderando a Cruzada dos Mendigos(Egerton 1500, Avignon, século XIV)
Os vitorianos herdaram essas ilusões do passado informado por fantasias do presente sobre as quais se elaboravam suas teses. Para eles, por exemplo, os romanos eram parrudos, sensíveis, caras sérios que criaram um Império para o bem-comum de todos e apenas esmagaram com brutalidade rebeliões contra seu jugo quando as ‘‘raças inferiores’’ sob seu domínio esqueciam seu lugar no esquema das coisas. Similarmente, sobre a nova nação da Alemanha, houve uma febre de histórias sobre as tribos germânicas primitivas que se ancoravam pesadamente em fantasias derivadas de uma espécie de espírito místico nacional proto-germânico, que veio a inspirar as mais variadas personalidades, como Jacob Grimm, Richard Wagner e, infelizmente, Adolf Hitler. No século XIX as Cruzadas foram vistas como aventuras românticas onde os bravos cavalariços deixaram para trás suas afáveis donzelas para irem para os países quentes darem pancadas de civilização em empoeirados caras enrolados em panos – algo que os europeus do século XIX estavam fazendo com gosto, à época.
O século XIX também assistiu o Mundo Árabe mudar sua visão sobre as Cruzadas. Outrora vistas como guerras onde, razoavelmente, venceram, agora eles as viam como prévias do moderno imperialismo neocolonial europeu. Isso levou a alguns exageros, como a tomada de uma visão ocidental romantizada de Saladino como o modelo do cavalheirismo, transformando-o num herói árabe no processo. Isso, por sua vez, permitiu que déspotas modernos como Saddam Hussein se colocassem como novos Saladinos – o que é ricamente irônico, pois Saladino era, na verdade, um curdo.
Mais recentemente, as Cruzadas têm sido geralmente postuladas como uma “coisa ruim” no Ocidente, também. Não apenas é intragável às modernas sensibilidades ocidentais a ideia de uma guerra santa em nome do Cristianismo, mas muitos comentadores atuais aceitam sem titubear a ideia de que o mundo muçulmano ainda fervilha séculos de ressentimento pelas Cruzadas, quando na verdade esse ressentimento tem menos de 150 anos de idade. No influente “História das Cruzadas” com seus três volumes, Sir Steven Runciman firmemente cementou muitas ideias recentes sobre essas expedições, como que elas eram motivadas por desejo de poder do Papa e não por genuíno zelo religioso e que eram nada mais que lideradas por militares bufões, incompetentes e cretinos. Dado o fato que ele era um bizantinista, seus preconceitos deveriam ficar claros, mas essas ideias permanecem firmemente fincadas. Elas são aceitas, geralmente, na percepção popular das Cruzadas, junto do “fato” de que a maior parte dos cruzados eram caçulas sem-terra em busca de novos territórios e que a empresa toda foi motivada primariamente por botim, tendo em vista as riquezas do Oriente.
Todas essas percepções das Cruzadas foram regularmente veiculadas desde o 11 de Setembro e, em particular, em comentário à Guerra do Iraque e a “Guerra ao Terror”. Mas se esses eventos recentes acabaram por criar uma perspectiva distorcida para a percepção das Cruzadas, a réplica de Rodney Stark a elas distorce-as ainda mais que as clarifica.
As Cruzadas como guerras defensivas? Uma tese tênua
Qualquer livro intitulado como “A Verdadeira História das Cruzadas” é obviamente enviesado, escrito com uma agenda ideológica por trás. E Stark mostra claramente sua agenda no começo de seu livro (Os batalhões sagrados: A verdadeira história das cruzadas) – o 11 de Setembro é mencionado logo na página 4 – o que leva a uma série seguinte de brados ocidentais sobre as Cruzadas durante a Guerra do Iraque com suas raízes nas suas condenações por anti-cristãos como Voltaire, Hume, Diderot, Fuller e, claro, Gibbon (pgs. 6-7). Tendo traçado o histórico da ideia de que os cruzados não eram nada mais que “gananciosos bárbaros de armadura”, Stark pontua seu contra-ataque:
“Para resumir a prevalente ‘’sabedoria’’: durante as Cruzadas, uma imperialista e expansionista Cristandade brutalizou, saqueou e colonizou um tolerante e pacífico Islã. Não exatamente. Como veremos, as Cruzadas foram precedidas por provocações islâmicas: por séculos de sangrentas tentativas de colonizar o Ocidente e por repentinos novos ataques a peregrinos cristãos em locais sagrados.” (Stark, p. 8)
Ele continua:
“Diferente da maioria dos historiadores convencionais das Cruzadas, não começarei com o apelo do Papa em Clermont, mas com a ascensão do Islã e o romper de invasões muçulmanas à Cristandade. É aí que tudo começou – no século sete, quando os exércitos islâmicos abocanharam uma grande porção do que era, até então, território cristão: o Oriente Médio, Egito, toda a África do Norte, e então a Espanha e o sul da Itália, assim como as grandes ilhas do Mediterrâneo...nem irei eu meramente recordar as batalhas dos cruzados, pois elas são compreensíveis apenas à luz da cultura e tecnologias superiores que tornaram possível que cavaleiros europeus marchassem vinte e cinco mil milhas, sofrendo grandes percas durante o caminho para então baterem forças muçulmanas ainda maiores.” (Stark, pg. 9)
A derrota dos cruzados em Gaza, retratada na Chronica majora de Matthew Paris, século XIII.
Ou, para resumir a tese dele na gritaria histérica de uma criança de nove anos pega brigando no parquinho da escola: “mas foram ELES que começaram!” Esse argumento não é muito novo, todavia. Já me deparei com ele online regularmente após o 11 de Setembro, particularmente de blogueiros americanos pró-Bush e pessoas querendo provar que o Islã é uma fé inerentemente violenta, intolerante e expansionista que só pode ser parada por um “tratamento de choque”, invasão e ocupação pelas ‘tementes a Deus’ Forças Armadas dos EUA. Não é nem sequer uma tese nova a ser apresentada em um livro – o “Guia Politicamente Incorreto do Islã” (e das Cruzadas) de Robert Spencer foi um best-seller entre as pessoas com esse pensamento desde sua publicação em 2005, e é exatamente o mesmo caso. Essencialmente, a tese do “ELES começaram!” argumenta que, longe de serem um não-provocado, isolado e inovativo assalto da Europa ao mundo do Islã, as Cruzadas foram na verdade um corajoso e justificado contra-ataque de uma Cristandade sitiada frente ao ‘terror’ islâmico. Em outras palavras, uma versão medieval, direto do século XI, da doutrina de “lutar lá para não lutar acá” de George Bush.
O problema é que essa tese revisionista, como todas as tentativas ideológicas de analisar a História, é tão torta quanto as ideias que supõe-se estarem revisando e corrigindo.
“A Cristandade contra-ataca”
Depois de um breve resumo do período da morte de Muhammad (632 Ec.) passando pelo saque de Roma pelos muçulmanos sicilianos (846 E.c) e o rápido avanço islâmico sobre a Síria, Pérsia, Palestina, Egito, África do Norte, Sicília e Espanha nesse período, Stark começa a falar sobre o cenário histórico das Cruzadas por detalhar como “a Cristandade contra-atacou”. Ele começa pela derrota dos muçulmanos espanhóis pelo senhor da guerra franco Carlos Martel em Poitiers (ou Tours, dependendo do relato que levar em conta) em 732 E.c – fato esse que ele eleva ao status apoteótico de mudar a maré a favor de uma réplica da “Cristandade”. Ele escreve:
“Como era de se esperar, historiadores mais recentes foram rápidos ao reclamar que a Batalha de Tours foi de pouca ou nenhuma significância.” (pg. 43)
Na realidade, a opinião atual permanece dividida se a derrota de Abdul Rahman al-Ghafiqi pelo neto de Carlos Magno representou uma mudança significativa na expansão do Islã em direção ao Ocidente ou foi apenas a derrota de uma patrulha de reconhecimento que pouco mais era que uma caravana de pilhagem. Ambas as interpretações têm seus méritos, ainda que Stark categoricamente afirme a veracidade da primeira. Ainda mais importante, Stark proclama que a batalha representou uma virada tática , com a parruda infantaria franca de Martel formando uma nova e decisiva contenção às táticas de cavalaria leve das forças muçulmanas que foram as catalizadoras de tantas conquistas no século anterior:
“É axiomático na ciência militar que a cavalaria não é párea contra formações bem-armadas e bem-disciplinadas de infantaria a não ser que estejam em grande vantagem numérica. O papel efetivo da cavalaria é perseguir a infantaria que foge pelo campo assim que suas linhas tenham cedido. Mas, quando determinada, a infantaria mantém suas posições, permanecendo ombro-a-ombro para formar uma parede de escudos através da qual projetam uma porção de longas lanças apoiadas no chão, com as cavalarias sendo repelidas...nesse contexto, as forças muçulmanas consistiam quase inteiramente de cavalaria leve...opondo-se a eles estava um exército ‘composto inteiramente de soldados a pé, vestindo malha [armadura] e carregando escudos’. Foi uma luta bem desigual.” (pg. 41-42)
Isso tudo é mais ou menos verdade, mas é também um exemplo, já cedo, de Stark simplificando demasiadamente a situação tática e militar – algo que ele faz durante todo o livro. Primeiramente, assumir que o exército espanhol muçulmano (ou qualquer outro do mundo islâmico) era constituído exclusivamente de cavalaria leve é sem nexo algum – eles tinham infantaria, arqueiros e cavalaria pesada também. Em segundo lugar, dizer que esta foi a primeira vez em que um exército “muçulmano’ se defrontou com infantaria fazendo as manobras táticas anti-cavalaria descritas é ridículo. Os exércitos bizantinos que foram derrotados pelas forças árabes (na maioria das vezes) no século anterior tinham por base a precisa tática anti-cavalaria que Stark aqui descreve. Finalmente, a batalha muito provavelmente não foi wa simples “cavalaria leve dissipando-se sobre disciplinada infantaria” que Stark a reduz. David Nicolle, um historiador militar contemporâneo que é bem-versado tanto nos equipamentos e táticas do Oriente Islâmico quanto nos Ocidente Europeu, escreve:
“A interpretação clássica da vitória de Carlos Martel sobre uma tropa de saque muçulmana em Poitiers mantém que os francos cristãos permitiram que seus inimigos se chocassem de maneira suicida contra uma dura, porém estática formação defensiva. Todavia, isso está provavelmente bem errado; a evidência poderia ser igualmente interpretada pelos francos cargando e atropelando o acampamento árabe-muçulmano num repentino e inesperado assalto.”
(David Nicolle, Medieval Warfare Source Book: Volume One – Warfare in Western Christendom, p. 77)
Aqui, assim como em vários outros lugares de seu livro, Stark apresenta uma hiper simplificada e tendenciosa interpretação que encaixa na sua tese enquanto ignora, omite, ou está magicamente desavisado, das mais complexas e recentes alternativas.
Sua tendência de simplificar as coisas ao ponto de distorcer a História continua no seu relato da Reconquista Espanhola pelos reinos cristãos do Norte contra o Sul muçulmano. De acordo com Stark, esse foi um processo muito simples – foi um contra-ataque concentrado empregado por cristãos contra muçulmanos em defesa da ‘Cristandande’. Ele pinta o sucesso de Rodrigo Díaz de Vivar – o “El Cid” da lenda – na década de 1090 como um fator de mudança radical e o coloca como um modelo de vigor marcial cristão contra os muçulmanos. Ele atribui essa reviravolta à desunião e política fraccionada dos tolos muçulmanos:
“Talvez a mais memorável marca dos territórios islâmicos fosse seu incessante estado de conflito interno; conspirações, assassinatos e traições formavam uma poção letal...a Espanha era uma colcha de retalhos de feudos muçulmanos em constante contenda, não raramente aliando-se a cristãos uns contra os outros.” (pg. 47)
Para qualquer um com o básico de conhecimento da história medieval espanhola, essas afirmações são simplesmente bizarras. Isso não era uma “marca’ dos “territórios islâmicos” em si – era uma marca de todos os estados espanhóis, tanto cristãos quanto muçulmanos. Assim como seus vizinhos muçulmanos, os governantes hispano-cristãos indulgenciavam-se em nada menos que uma letal poção de intriga, conflitos fratricidas e assassinatos. Isso é simplesmente o que os governantes da Europa à época faziam. Quanto a muçulmanos aliando-se a cristãos contra seus correligionários, Stark convenientemente omite que os cristãos faziam isso também. Seu herói, Rodrigo Díaz, passou seis anos a serviço de Yusuf al-Mu'taman ibn Hud de Zaragoza e seu sucessor. Nesse tempo, ele infligiu derrotas sobre Sancho I de Aragão e Ramón Bereguer II, conde de Barcelona, capturando este último em batalha e fazendo-o de refém em benefício de seu senhor muçulmano. Stark refere-se a isso tudo de passagem, mas falha em conceder-lhe a devida significância: essas guerras infindáveis não eram bravos contra-ataques por cristãos contra o avanço muçulmano, mas sim as constantes e costumeiras escaramuças por poder, dominação e terra que marcaram o período na Europa inteira. Diferentemente de Stark, Rodrigo Díaz e seus contemporâneos pouco se importavam se seus soberanos iam à missa ou à mesquita. Mais uma vez, Stark manipula as partes mais complexas que não lhe favorecem e apresenta uma versão simplista e xucra no lugar.
Agonia e morte de Guilherme II da Sicília, atendido por médicos e astrologos árabes. Iluminação de Liber ad honorem Augusti (Codex 120II, Burgerbibliothek Bern) por Pedro de Eboli. É uma crônica pictórica estauferiana concluída em 1196.
Tirando dos árabes sua própria Ciência
Simplicar demais as coisas é uma coisa, deliberadamente distorcê-las por puro e inflexível enviesamento é outra. No seu próximo capítulo – “Ignorância” Ocidental Versus “Cultura” Oriental – Stark embarca numa absurda tentativa de denegrir a ideia de que o mundo islâmico era de longe muito mais avançado intelectualmente que a Europa no período e tenta colocar a Europa como sendo superior. É, sem dúvida, o mais estúpido argumento em toda sua tese furada.
Seu argumento consiste quase que totalmente em apontar os estudiosos no Oriente que eram dhimmis ao invés de muçulmanos e tentar, de maneira bizarra, reclamar através disso que não podemos alegar que a inegável intelligentsia do mundo árabe da época era “muçulmana” – como se ideias tivessem algum tipo de filiação religiosa. Ele pontua que muito do conhecimento do mundo islâmica tinha origem grega, tendo sido preservado por cristãos nestorianos trabalhando sob mestres muçulmanos. Isso é ridículo. Deixar de lado o fato que haviam muitos estudiosos orientais que eram muçulmanos (pois Stark convenientemente deixa isso de lado), para dizer que isso significa que o mundo islâmico não detinha uma cultura intelectual florescente enquanto o Ocidente permanecia ignorante dessa sabedoria grega perdida, é absurdo. É como dizer que não houve uma Renascença Carolíngia pois Alcuíno, Pedro de Pisa, Paulo o Diácono, Teodulfo de Orleáns e José Scottus não eram francos. Independente da filiação étnica ou religiosa de alguns dos estudiosos que impulsionaram o florescer desse conhecimento do período, implicar que por isso o Oriente não era, de fato, bem mais avançado que o Ocidente, é simplesmente estupidez.
Quando cheguei na parte em que Stark tenta seriamente argumentar que o uso dos algarismos “arábicos” no Oriente não é algo significante porque esses números eram, originalmente, “hindus” (pg. 59), este leitor ficou prestes a jogar o livro imbecil de Stark na parede.
Mas ele fica ainda mais idiota. Numa seção intitulada ‘’Contrastes na Tecnologia”, Stark embarca numa tentativa ainda mais ridícula de argumentar que o Oriente era tecnologicamente menos avançado que a Europa. Enquanto algumas evidências que ele apresenta aqui são legítimas – europeus inventaram, refinaram e exploraram tecnologias significativas nesse período – inventar a ideia de que o mundo muçulmano era tecnologicamente retrógrado é balela. Isso também inclui algumas falas que não apenas totalmente erradas, mas hilariantes. Por exemplo, enquanto discute o desenvolvimento de armaduras mais pesadas na Europa Medieval, Stark afirma que os hauberks do século XI eram de alguma forma superiores até mesmo às elaboradas armaduras de placas da Baixa Idade Média:
“Essas vestimentas (de placas) vieram apenas mais tarde e apenas alguns cavaleiros da cavalaria pesada chegaram a vesti-la, uma vez que careciam perigosamente de praticidade. Cavaleiros nessas armaduras tinham que ser levantados em suas selas por impulsos; se caíssem, não poderiam levantar-se em pé para continuar a lutar.” (pgs. 71-72)
Além da frase “essas vestimentas vieram apenas mais tarde”, cada palavra nessas duas sentenças estão total e completamente erradas. Arnês de placas eram vestidos por cavaleiros, seus cuidadores e qualquer um que conseguisse colocar suas mãos nela pois elas não “perigosamente careciam de praticidade” (eram os cavaleiros idiotas?) mas porque ela era incrivelmente efetiva. Ela foi abandonada apenas quando as armas de fogo e táticas diferentes de infantaria reduziram sua efetividade – cerca de 200 a 300 anos depois. A ideia de que esses cavaleiros precisavam de um empurrãozinho para subirem no cavalo é um mito do século XIX, com sua origem em um romance de Mark Twain. E longe de não conseguirem ficar de pé se desmontados do cavalo, cavaleiros em armadura de placas podiam correr, pular e literalmente fazer estrelinhas usando-as, assim como gostam de demonstrar os reprodutores de combates medievais atualmente. Esse tipo de lambança envergonharia um estudante de história sem diploma (que poderia fazer uma rápida pesquisa no Google para ver que isso é uma sandice), mas parece que Stark fez sua pesquisa lendo A Connecticut Yankee in King Arthur's Court de Mark Twain ou assistindo Henry V de 1944.
Stark termina este monumentalmente estúpido e errático capítulo com mais uma de suas geniais excursões em história militar em que ele coloca a besta como uma espécie de super-arma imbatível e prossegue propondo que os cruzados eram superiores a seus inimigos muçulmanos em qualquer aspecto. Novamente, isso é besteira. Numa pesquisa de 48 batalhas de muçulmanos contra cruzados que fiz alguns anos atrás, descobri que os cruzados ganharam 26 e os muçulmanos, 21. Os dois lados eram páreo entre si mesmos. Isso não é nada surpreendente, todavia, uma vez que durante a maior parte das Cruzadas, ambos os lados usavam armas e armaduras similares e, após os cruzados adotarem a cavalaria leve, chegaram a dispor das mesmas táticas e tipos de tropas.
Stark entendeu tudo ERRADO
A próxima seção do livro tenta dispersar a ideia de que as Cruzadas foram feitas sem provocação e cataloga as supostas atrocidades muçulmanas e ataques a peregrinos, que chama de a “real” razão das Cruzadas serem convocadas. O que é notável a qualquer observador objetivo aqui é a quantidade pequena de material que ele dispõe para e a longa distância no passado (antes das cruzadas que ele tem que chegar (séculos IX e VIII) para achar algo. De fato, houveram alguns pogroms contra cristãos no mundo islâmico e algumas vezes peregrinos cristãos eram assediados. Agora, imaginem se houvessem enclaves muçulmanos na Europa Ocidental ou grandes grupos de (bem-amados) peregrinos muçulmanos marchando para a França central do século XI, não veríamos exata mesma coisa acontecendo por lá?
Tirando isso, esses incidentes e coisas como a destruição do Santo Sepulcro em 1009 foram a exceção, não a regra. Além do mais, elas não configuram a razão pela qual os cruzados lançaram-se à guerra.
Esse último ponto também pode ser estendido numa crítica pontual da tese maior de Stark. Se as Cruzadas foram, como ele tenta argumentar, simplesmente uma reação à invasão muçulmana na "pátria" europeia, por que não vemos isso refletido em nenhum da enorme quantidade de material que temos sobre a pregação da Primeira Cruzada? Ou qualquer material que temos sobre as motivações dos cruzados? O Papa Urbano e os outros instigadores das Cruzadas esqueceram de mencionar isso? E se essa era a motivação "verdadeira" dos cruzados, então lançar um ataque militar caríssimo e altamente perigoso ao longo de uma distância de 2.500 milhas na Palestina, de todos os lugares possíveis, era uma maneira extremamente estranha de fazer isso. Não é como se Jerusalém fosse o coração religioso do Islã (que era a Arábia) ou mesmo seu centro político (que era o Cairo) ou mesmo seu centro intelectual (que era Bagdá).
Se o objetivo real era reverter as marés fervilhantes da expansão “fanática” muçulmana dos portões da Europa, como Stark tenta colocar, então o alvo óbvio estava muito mais perto de casa: na Espanha. Stark até menciona, de passagem, que um dos predecessores papais de Urbano, Alexandre II, já havia tentado incitar os cavaleiros da Europa a se juntarem aos reinos cristãos espanhóis atacando hispano-muçulmanos em 1063, mas o resultado foi menos que espetacular mesmo pela própria admissão desajeitada de Stark:
“A resposta foi muito modesta. Um pequeno contingente de cavaleiros francos parecem ter-se aventurado na Espanha e sua participação pode ter ajudado na recuperação de mais território muçulmano, mas nenhuma batalha significante foi travada.” (pg. 46)
Então devemos acreditar que, em 1063, um chamado papal para atender à necessidade supostamente crescente de defender uma Europa sitiada da expansão islâmica só poderia reunir "um pequeno número de cavaleiros francos", apesar da promessa de remissão de pecados para aqueles que embarcaram, mas apenas 32 anos depois, desencadeou um movimento de massa, exércitos às centenas de milhares e guerras que duraram mais de 200 anos em uma terra a 2.500 milhas de suas casas? Isso simplesmente não faz sentido.
Stark está claramente errado. Muito trabalho acadêmico sólido foi feito nos últimos 60 anos sobre as reais motivações por trás do ideal das Cruzadas –ideias milenaristas sobre o Apocalipse vindouro, visões idealizadas de Jerusalém não como um lugar, mas um conceito místico, o crescente alinhamento da cavalaria com os ideais religiosos, a expansão externa dos europeus ocidentais em todas as direções etc – mas não há evidências de que elas tenham sido vistos como guerras defensivas contra inimigos que invadem a Europa, como o exemplo espanhol demonstra claramente.